Publicado originalmente em 15 de outubro de 2021
Este ano marca o centenário do nascimento do educador brasileiro e figura internacional da “Nova Esquerda”, Paulo Freire (1921-1997). O aniversário tem sido amplamente reconhecido em círculos pseudoesquerdistas e acadêmicos, com a sua imagem sendo até mesmo colocada no “doodle” do Google.
O livro Pedagogia do Oprimido, publicado por Freire em 1968, , vendeu milhões de cópias e, segundo uma pesquisa recente, é o terceiro trabalho mais citado em pesquisas em ciências sociais. O seu sucesso fez de Freire uma figura internacional e, posteriormente, ele liderou ou foi consultor em campanhas de alfabetização em massa em vários ex-países coloniais, incluindo Guiné-Bissau, Moçambique e Tanzânia, além de receber títulos honorários de 29 universidades na Europa e nas Américas. Mais de duas décadas após a sua morte, o trabalho de Freire permanece influente nos departamentos de educação em todo o mundo.
O consenso acadêmico é que Freire desenvolveu uma teoria e prática educacionais radicais e até mesmo marxistas. Pedagogia do Oprimido é promovido como um dos textos fundadores da chamada “pedagogia crítica”. Isso tem sido reforçado pela promoção de Freire por várias figuras pseudoesquerdistas internacionalmente desde os anos 1970 até os dias de hoje, incluindo, nos Estados Unidos, o linguista Noam Chomsky (“Freire é um revolucionário radical”) e o pedagogo Peter McLaren (ele escreveu recentemente na Jacobin que Freire “continua sendo um exemplo para professores que trabalham em comunidades pobres em todo o mundo, e para praticamente qualquer um que busca um senso de justiça em um mundo injusto”).
O centenário oferece uma oportunidade para esclarecer seu legado histórico. Nenhum aspecto do trabalho de Freire possui qualquer relação com a teoria marxista, a luta para construir um partido revolucionário na classe trabalhadora ou o desenvolvimento de uma pedagogia socialista.
Assim como muitas outras figuras dentro da “Nova Esquerda” dos anos 1960, Freire reuniu ecleticamente uma mistura de diferentes tendências filosóficas antimarxistas, em seu caso incluindo a “teologia da libertação” católica, o idealismo hegeliano, o existencialismo e a política da Escola de Frankfurt. Em termos de classe, toda a carreira de Freire demonstrou uma orientação consistente à classe média e ao campesinato, com uma alfabetização voltada para promover projetos nacionalistas burgueses nos países oprimidos e ex-países coloniais da América Latina e da África.
Início da carreira de Freire
Freire nasceu em 1921 em Recife, a maior cidade no Nordeste do Brasil, em uma família de classe média ‒ seu pai era da polícia militar. Ele estudou direito antes de ir para o ensino através de aulas de língua portuguesa para adultos. As suas primeiras atividades foram na organização da anticomunista Ação Católica e, depois, nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) ligadas ao movimento da teologia da libertação que se desenvolveu dentro da Igreja Católica no Brasil e em toda a América Latina.
Freire então começou a trabalhar para o Serviço Social da Indústria (SESI), tornando-se diretor da divisão de educação e cultura da organização.
O SESI foi criado e financiado por empresários industriais brasileiros em 1946. Conforme foi resumido por um historiador: “A organização foi fundada em resposta aos protestos trabalhistas em relação ao aumento do custo de vida no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial. A Guerra Fria exacerbou os temores de que as limitadas oportunidades educacionais disponíveis para a classe trabalhadora no Brasil tornassem provável o seu desvio pelos líderes de esquerda. A organização prometeu trazer a ‘paz social no Brasil’. Ao eliminar os conflitos de classe, a organização ajudaria a promover o desenvolvimento econômico.” [1]
Desviar e reprimir a luta de classes era uma questão crítica para a elite dominante brasileira. O proletariado industrial no país mais do que triplicou no período anterior, de cerca de 300 mil em 1920 para um milhão no início da década de 1940. O Partido Comunista Brasileiro sofreu uma degeneração stalinista no final dos anos 1920 e 1930 e, nesse período, buscou várias alianças oportunistas de Frente Popular com representantes supostamente “progressistas” da burguesia nacional do país. Entretanto, a classe trabalhadora permaneceu profundamente influenciada pela Revolução Russa de 1917 e procurou avançar em defesa dos seus interesses contra a burguesia.
Freire trabalhou com o SESI por dez anos, reconhecendo mais tarde que a organização representava “uma tentativa de aliviar os conflitos de classe e bloquear o desenvolvimento de uma consciência política e militante entre os trabalhadores”. [2] O seu trabalho de alfabetização nesse período, incluindo a criação do famoso “método Paulo Freire” para ensinar as pessoas a ler e escrever, foi desenvolvido dentro da estrutura anticomunista do SESI.
O seu método envolvia o trabalho com grupos de analfabetos adultos, utilizando um projetor de slides para mostrar diferentes ilustrações da vida no Brasil ‒ um camponês cavando a terra, um homem indígena caçando aves, pessoas fazendo panelas de barro (trabalhadores urbanos eram peculiarmente ausentes dos slides de Freire) ‒ com uma discussão posterior visando revelar o vocabulário oral existente nos analfabetos e, ao mesmo tempo, esclarecer a diferença entre produtos da natureza e da cultura. A partir disso, o educador desenvolvia uma série de “palavras geradoras”, que ajudavam no ensino. Essas palavras (geralmente em torno de 18) são consideradas “geradoras” sob dois pontos de vista: o seu valor no ensino das relações letra-som e o seu desenvolvimento da compreensão política dos analfabetos.
A palavra tijolo, por exemplo, era uma palavra “geradora” muito utilizada. Um observador relatou: “Foi preparada uma imagem de uma cena de construção. Essa imagem foi mostrada primeiro sem a palavra tijolo. A segunda figura mostrando a cena da construção junto com a palavra tijolo foi introduzida somente após o grupo ter discutido o uso de tijolos para construir as suas próprias casas, a moradia como um problema comunitário, obstáculos para uma moradia melhor e quaisquer outros tópicos que fossem gerados. Na terceira figura ou slide, a palavra tijolo aparecia sozinha.” [3]
Os professores de alfabetização então dividiam o tijolo em partes silábicas, desenvolvendo a compreensão das relações letra-som através da comparação com outras sílabas (uma abordagem eficaz apenas com línguas como o português, que, ao contrário do inglês, apresenta uma relação predominantemente transparente entre letras e sons).
O desenvolvimento da compreensão política através do método de alfabetização de Freire foi descrito como conscientização.
Esse foi um termo popularizado por Freire, embora tenha sido cunhado pela primeira vez por sociólogos no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), um instituto financiado pelo governo. O ISEB promovia o “nacional-desenvolvimentismo”, uma ideologia que serviu à ascensão do capitalismo brasileiro no período pós-Segunda Guerra. Freire era naquela altura um convicto “nacional-desenvolvimentista”. A conscientização era um conceito nacionalista burguês, essencialmente destinado a garantir que os camponeses, que só podiam votar após aprender a ler e escrever, apoiassem os partidos do establishment no Brasil.
A pesquisadora Vanilda Paiva resumiu a seguir o ponto de vista de um intelectual líder do ISEB: “A nacionalidade é a categoria-chave da consciência crítica ... Levando em conta os interesses nacionais, a consciência crítica é capaz de analisar questões específicas dentro da totalidade da nação e perceber a realidade nacional naquele momento, tudo isso enquanto continuamente faz novas escolhas sobre os objetivos das lutas nacionalistas em sintonia com os objetivos já alcançados. ... Essa forma de consciência levaria assim naturalmente à defesa de certas posições políticas: humanização do trabalho, reforma agrária, fortalecimento da indústria nacional, povoamento brasileiro da Amazônia, soberania nacional, proteção dos recursos naturais do país, contenção do capital estrangeiro, e assim por diante.” [4]
Freire ganhou ampla atenção por seu trabalho de alfabetização, especialmente por declarar poder ensinar os camponeses a ler em apenas 40 horas equipado apenas com um projetor de slides e alguns cartões de memória.
O ensino da leitura e da escrita na América Latina surgiu como uma questão política na Guerra Fria, depois que o governo nacionalista burguês radical de Fidel Castro iniciou uma campanha em massa em 1961 para eliminar o analfabetismo em Cuba. O crescente destaque de Freire nesse período se deveu em grande parte ao apoio do imperialismo americano, que buscava alternativas educacionais àquelas promovidas por Cuba. Uma parte significativa do financiamento para o trabalho de Freire veio através da Aliança para o Progresso do governo Kennedy, um programa de auxílio com o objetivo de prender as economias da América Latina aos EUA e promover uma imagem “progressista” da política imperialista dos EUA no hemisfério.
Em 1961, o prefeito de Recife deu a Freire a tarefa de desenvolver um programa de alfabetização em toda a cidade. Posteriormente, ele aceitou o financiamento da Aliança para o Progresso para estender esse programa para todo o empobrecido estado de Pernambuco. Em maio de 1963, o presidente brasileiro, Joāo Goulart, liderou uma equipe de funcionários do governo, membros do Departamento de Estado dos EUA e jornalistas americanos para acompanhar a formatura oficial da primeira turma de camponeses. O jornal New York Times citou Philip Schwab da Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional(USAID): “Nós não estamos apenas tentando ensinar as pessoas a ler e escrever. Pretendemos, através do programa de alfabetização, tornar essas pessoas capazes de serem cidadãos.”
Posteriormente, Goulart convidou Freire para trabalhar em nível nacional no ministério da Educação de seu governo. Esse projeto foi interrompido pelo golpe militar apoiado pelos EUA em março de 1964.
As tensões de classe haviam aumentado ao ponto do imperialismo americano não acreditar mais que o nacionalismo populista de Goulart seria capaz de conter a classe trabalhadora e evitar a revolução social. O presidente eleito também havia atraído a ira de Washington com a sua oposição às sanções contra Cuba e com várias reformas, como a nacionalização de várias refinarias de petróleo e os limites impostos às repatriações dos lucros pelas corporações transnacionais. A mudança de Washington em apoio aos militares foi acompanhada pela remoção do financiamento americano para o programa de alfabetização de Freire meses antes do golpe. Após o golpe militar, Freire foi preso e, depois, exilado, acusado pelo novo regime ditatorial de preparar o caminho para o comunismo ao ajudar a ensinar os pobres a ler e escrever.
A guinada “radical” de Freire e Pedagogia do Oprimido
Freire foi ao Chile e trabalhou para o governo democrata-cristão do presidente Eduardo Frei. A CIA havia participado da campanha eleitoral de Frei em setembro de 1964 e considerou a derrota do socialdemocrata Salvador Allende um sucesso durante a Guerra Fria. O Chile recebeu mais auxílio per capita dos EUA do que qualquer outro país na América do Sul nos anos 1960, e muitos dos programas de Frei foram financiados através da Aliança para o Progresso. [5]
Freire foi empregado em diferentes épocas entre 1964 e 1969 pela Corporação da Reforma Agrária do governo chileno e pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), enquanto desenvolvia cursos de alfabetização para adultos em todas as regiões rurais do Chile. Em contraste às regiões urbanas do Chile, que possuíam a maior taxa de alfabetização da América Latina, 36% da população continuava analfabeta nas regiões rurais.
O governo Frei adotou o “método Freire” e promoveu a conscientização. Em uma introdução ao manual oficial do programa de alfabetização, um alto funcionário do governo deu uma explicação reveladora dos cálculos do governo na promoção da “consciência crítica” contra a suposta “consciência mágica” dos camponeses ‒ segundo o relato, um grupo de pescadores rurais chilenos acreditava que os peixes podiam sentir e fugir das pessoas gananciosas por dinheiro. A autoridade do governo reclama que, por conta disso, após uma boa pesca, os pescadores tiravam vários dias de folga, renunciando à possibilidade de acumular maiores lucros e contribuir para o desenvolvimento da economia. [6]
O Chile nos anos 1960 estava em uma situação pré-revolucionária e, no final da década, o governo Frei estava em profunda crise. A inflação crescente e as medidas de austeridade do governo prejudicaram o padrão de vida dos trabalhadores, provocando uma onda de greves crescente em um dos países mais urbanizados da América Latina. No campo, as forças do Estado entraram em choque com os camponeses, que invadiram grandes latifúndios exigindo expropriações. Isso coincidiu com uma radicalização dos trabalhadores e da juventude ao redor do mundo, pois um período revolucionário se abriu com o fim do boom econômico do pós-Segunda Guerra Mundial e a ampliação da crise imperialista dos EUA com a Guerra do Vietnã.
Grandes camadas da pequena burguesia e dos intelectuais latino-americanos foram radicalizadas nos anos 1960. A revolução cubana foi uma grande influência, e a guerrilha foi promovida como alternativa aos partidos comunistas oficiais stalinizados, que defendiam a “coexistência pacífica” e um “caminho parlamentar” para o socialismo através de alianças de Frente Popular com os partidos burgueses.
Dentro da equipe de alfabetização de Freire no Chile, muitos dos jovens professores e administradores transferiram a sua lealdade do partido democrata-cristão para o castrista Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR) após a sua fundação em 1965. Mais tarde, durante a Frente Popular apoiada pelos stalinistas (1970-1973), o MIR deu o que chamou de “apoio crítico” ao governo de Salvador Allende. Essa posição oportunista-centrista serviu para subordinar os camponeses sem terra que apoiavam o MIR ao governo burguês, que sabotou o desenvolvimento do movimento revolucionário e promoveu ilusões fatais no Estado capitalista, incluindo nos militares.
Freire foi claramente influenciado pela política do MIR e grupos relacionados em toda a América Latina ao escrever Pedagogia do Oprimido em 1968.
A natureza da virada “radical” de Freire tem sido frequentemente mal compreendida e deturpada. Ele promoveu movimentos políticos populistas-nacionalistas e guerrilheiros castro-guevaristas, orientados ao campesinato e voltados para um desenvolvimento econômico pan-americano livre do domínio do imperialismo americano. Tudo isso não possuía qualquer relação com ‒ ou, mais precisamente, era conscientemente contrário a ‒ um alinhamento à classe trabalhadora, o desenvolvimento da política marxista e a luta pela independência política dos trabalhadores com base em um programa socialista revolucionário e internacionalista. A orientação de classe de Freire, em direção a uma ala supostamente progressista da burguesia latino-americana, permaneceu consistente ao longo de sua carreira.
Pedagogia do Oprimido foi em parte uma reflexão sobre a abordagem de ensino de Freire e em parte um manifesto político pequeno burguês.
Em relação ao processo de ensino e aprendizagem, havia pouco de original no livro de Freire, que se baseava fortemente em abordagens pedagógicas progressistas de décadas atrás, como aquelas desenvolvidas pelo filósofo americano, John Dewey, e pelo educador francês, Célestin Freinet. Tais figuras haviam promovido abordagens pedagógicas antiautoritárias e procurado conectar a assimilação da alfabetização ao aprendizado dos estudantes sobre a sociedade em que viviam.
A apresentação de Freire deste último ponto se tornou associada ao seu chamado para “leitura do mundo, leitura da palavra”. Pedagogia do Oprimido também introduziu a metáfora do “modelo bancário” de ensino ‒ que subsequentemente se tornou conhecida por inúmeros estudantes-professores de todo o mundo ‒ onde modelos didáticos e de “instrução direta” de ensino eram criticados por serem semelhantes a “um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante. ... Em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e depósitos que os educandos recebem pacientemente, memorizam e repetem.” [7]
Peculiarmente, não há no livro de Freire qualquer consideração de numerosas questões há muito tempo centrais para os debates pedagógicos dentro do movimento socialista ‒ por exemplo, o papel do trabalho físico e mental dentro de uma educação politécnica, a relação entre escola e sociedade, e as práticas pedagógicas através das quais as realizações culturais da humanidade poderiam ser efetivamente assimiladas pela classe trabalhadora e pela juventude.
Ao invés disso, Pedagogia do Oprimido apresentava um radicalismo retórico opaco típico da “Nova Esquerda” dos anos 1960. Poucas figuras desse meio deixaram de ser citadas no livro de Freire (muitas vezes de forma gratuita e pretensiosa), entre elas, Herbert Marcuse, Jean-Paul Sartre, Erich Fromm, Frantz Fanon e Regis Debray. Também eram típicas as celebrações ao amor e à “humanização” ‒ uma passagem característica insistia que “a conversão ao povo requer um renascimento profundo”. Tais apelos foram acompanhados por desculpas para o stalinismo ‒ Freire acolheu a chamada revolução cultural de Mao Tse Tung como “ação em profundidade” em oposição a uma “cultura de dominação”.
Politicamente, Freire procurou ligar a sua crítica ao ensino autoritário aos ataques a qualquer esforço para construir um partido revolucionário e socialista da classe trabalhadora. Esse esforço foi condenado repetidamente como “sectarismo” e “liderança vanguardista”. Uma das poucas referências à classe trabalhadora em Pedagogia do Oprimido envolvia a queixa de que ela era “privilegiada” e manipulada pela ideologia da classe dominante: “grandes frações destas massas populares, já agora constituindo um proletariado urbano, sobretudo nos centros mais industrializados do país, ainda que revelando uma ou outra inquietação ameaçadora, carentes, contudo, de uma consciência revolucionária, se vêem a si mesmas como privilegiadas. A manipulação, com toda a sua série de engodos e promessas, encontra aí, quase sempre, um bom terreno para vingar.” [8]
Pedagogia do Oprimido promoveu duas variedades de nacionalismo burguês latino-americano ‒ o populismo e a guerrilha. Sobre a primeira, Freire citou extensamente um discurso do presidente brasileiro corporativista-populista, Getúlio Vargas, de 1º de maio de 1950, no qual ele chamou os trabalhadores a se unirem aos sindicatos patrocinados pelo Estado e a se unirem sob o seu governo. Freire promoveu essa campanha para subordinar a classe trabalhadora ao governo autoritário burguês de Vargas como “uma inclinação tão ostensiva à organização das massas populares, consequentemente ligada a uma série de medidas que tomou no sentido da defesa dos interesses nacionais.” [9]
A atração de Freire pela guerrilha foi um aspecto da sua promoção da teologia da libertação e do “sacerdote guerrilheiro” colombiano, Camilo Torres. O “radicalismo” de Freire nunca se estendeu a uma crítica à religião ou ao catolicismo, do qual ele foi um adepto vitalício.
Pedagogia do Oprimido também promoveu o governo cubano, com Castro e Guevara descritos como “liderança eminentemente dialógica”. Freire em nenhum lugar explicou a natureza “dialógica” da prisão dos trotskistas cubanos por Castro, nem da saudação de Ramon Mercader, o assassino de Leon Trotsky, por Guevara após sair da prisão no México. Deve-se acrescentar que o autor também nunca considerou a sua responsabilidade pelas conseqüências desastrosas da guerrilha, que resultou em dezenas de milhares de jovens na América Latina torturados e assassinados pelas forças militares e de segurança apoiadas pelos EUA, que facilmente derrotaram as várias tentativas de lutas armadas aventureiras nesse período.
O exílio após o Chile e a adoção da política de Frente Popular
Após a publicação de Pedagogia do Oprimido, Freire deixou o Chile em 1969 e trabalhou por dois anos como professor visitante na Universidade de Harvard nos Estados Unidos. Ele então se mudou para Genebra, Suíça, onde passou uma década trabalhando para o Conselho Mundial de Igrejas. Durante esse período, Freire liderou várias campanhas de alfabetização em novos países independentes, a maioria ex-colônias portuguesas na África, e também fez turnês de palestras em diferentes países como uma espécie de celebridade da “Nova Esquerda”.
Graças ao arquivo de Julian Assange no WikiLeaks, temos acesso a um episódio revelador em 1975 que demonstra como o imperialismo americano avaliava a suposta “pedagogia radical” de Freire.
O secretário de Estado e infame criminoso de guerra Henry Kissinger convidou Freire para os EUA através de um telegrama diplomático enviado em 7 de agosto de 1975 ‒ menos de dois anos após ele e o presidente Richard Nixon terem ajudado os militares chilenos a tomar o poder e sequestrar, torturar e assassinar milhares de trabalhadores e jovens de esquerda. Descrevendo Freire como um “distinto educador e autor brasileiro”, Kissinger enviou telegramas para diplomatas americanos na Suíça para “ajudarem a fazer convite a Paulo Freire para discursar na conferência do Dia Internacional da Alfabetização em Washington”, com o Departamento de Educação dos EUA (USOE) “reembolsando Freire por diárias e despesas de viagem”.
No final, autoridades do Departamento de Estado informaram Kissinger que “após ligação de telefone com Paulo Freire, seu escritório confirmou que [era] infelizmente impossível para ele [aceitar] o convite do USOE”.
Em 1980, Freire foi membro fundador do Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil, que foi estabelecido por setores da burocracia sindical e um conjunto de organizações oportunistas “esquerdistas”, incluindo grupos pablistas e ex-trotskistas. O PT desempenhou o papel central no desvio do movimento de greves massivo da classe trabalhadora brasileira no final dos anos 1970, que possuía um caráter de insurreição, sob o Estado burguês e a “transição” do regime militar para a democracia parlamentar. O PT se deslocou firmemente para a direita à medida que a sua força eleitoral aumentava, e o partido procurou assegurar à elite dominante brasileira que poderia confiar nele para proteger seus interesses enquanto estivesse no poder.
Freire desempenhou um papel dentro deste processo. Em 1988, o PT ganhou eleições municipais na cidade de São Paulo, e Freire serviu como secretário da Educação sob a prefeita Luiza Erundina entre 1989 e 1991. Nesse papel, ele implementou limitadas medidas, como a reforma de muitas das degradadas escolas públicas da cidade. O significado mais amplo do curto governo Erundina na maior e mais rica cidade do Brasil foi a demonstração do PT para a elite dominante de que era um instrumento seguro no governo.
Pouco mais de uma década depois, em 2002, o líder do partido e antigo presidente do sindicato dos metalúrgicos, Luiz Inácio Lula da Silva, ganhou a presidência e, no cargo, implementou políticas econômicas ditadas pelo FMI e exigidas pela burguesia. Essas experiências do PT, em nível municipal e nacional, desacreditaram o partido na classe trabalhadora e abriram as portas para Bolsonaro e a extrema direita. Hoje, em São Paulo, o PT detém apenas oito dos 55 assentos da câmara municipal.
Em 1992, logo após a experiência de Freire no cargo e cinco anos antes de sua morte, ele publicou seu último livro significativo, Pedagogia da Esperança: Um reencontro com a Pedagogia do oprimido.
Ele foi escrito logo após a liquidação da União Soviética e o colapso da perspectiva nacionalista burguesa na América Latina e internacionalmente, que havia promovido o nacionalismo econômico baseado na substituição de importações. Não mais capazes de manobrar entre o imperialismo americano e a URSS, as elites dominantes em todo o antigo mundo colonial procuraram atrair capital financeiro internacional implementando programas de “ajuste estrutural” contra a classe trabalhadora ditados pelo FMI. Várias lideranças pequeno-burguesas da guerrilha, em países como El Salvador e Nicarágua, aceitaram acordos de “paz” ditados pelos EUA e o programa do capitalismo de “livre mercado”, transformando-se em partidos parlamentares burgueses.
Pedagogia da Esperança de Freire refletiu a sua resposta desmoralizada a esses acontecimentos. Ecoando o triunfalismo anticomunista do “fim da história”, promovido após a restauração do capitalismo na antiga União Soviética, ele insistiu que “Marx e Lenin também tinham sua culpa e não apenas Stalin” pela “moldura autoritária” do “socialismo real” (ou seja, os Estados stalinistas). [10]
Esse esforço anticomunista para responsabilizar Marx e Lenin pelos crimes da burocracia contrarrevolucionária stalinista dentro da União Soviética foi acompanhado pela promoção de Freire da política de direita. Ele exigiu que “os marxistas superassem sua presunçosa certeza de que são modernos, adotassem uma atitude de humildade ao lidar com as classes populares e se tornassem pós-modernos, menos presunçosos e menos certos — progressivamente pós-modernos”. [11]
Freire apoiou a política de colaboração de classe ainda mais aberta e grosseiramente do que havia anteriormente. Em 1992, a guerra civil de 12 anos em El Salvador terminou com a guerrilha da Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional (FMLN) se convertendo no partido do establishment de oposição ao partido de direita, ARENA, no poder. O acordo de paz envolvia uma anistia geral para os crimes de guerra cometidos pelos militares salvadorenhos, que foram financiados e armados por Washington enquanto assassinava e “desaparecia” dezenas de milhares de pessoas. Freire apoiou essas medidas sobre a seguinte base: “Há momentos históricos em que a sobrevivência do todo social, que interessa às classes sociais, lhes coloca a necessidade de se entenderem ... O aprendizado, afinal, de que numa nova prática democrática, é possível ir ampliando os espaços para os pactos entre as classes e ir consolidando o diálogo entre diferentes. Vale dizer, ir aprofundando-se as posições radicais e superando-se as sectárias”. [12]
Refletindo sobre a Frente Popular chilena e o golpe de 1973, Freire criticou a socialdemocracia e o stalinismo pela direita, insistindo que não haviam sido feitas concessões suficientes aos democratas cristãos de direita. Ele escreveu: “O caminho para as forças progressistas mais à esquerda da Democracia Cristã estaria em aproximar-se dela – política é concessão com limites éticos – cada vez mais”. [13]
Em qualquer caso, concluiu Freire, a tomada militar havia sido inevitável: “do golpe do Chile que teria ocorrido mesmo que as esquerdas não tivessem cometido os erros que cometeram. Quanto menos erros cometidos tanto mais cedo teria sido o golpe imposto. Em última análise, a razão do golpe se achava muito mais nos acertos do que nos erros das esquerdas”. [14]
Essa é uma declaração de falência política. As “profundas” reflexões filosóficas de Freire sobre o golpe de Estado constituíram um grosseiro álibi, encobrindo a responsabilidade da socialdemocracia, do stalinismo e do MIR pela catástrofe de 1973. Uma situação revolucionária havia surgido no Chile, mas o que faltava era a direção política, cujo desenvolvimento Freire sempre se opôs ‒ um partido revolucionário lutando para estabelecer a independência política da classe trabalhadora com base na luta por um governo operário comprometido com as políticas socialistas.
Conclusão
Há poucas figuras intelectuais no século XX cuja reputação de radicalismo político é mais diretamente desmentida por uma revisão objetiva de sua história do que Paulo Freire.
Isso reflete o impacto político do stalinismo e do pablismo no período pós-Segunda Guerra Mundial. A educação está entre as disciplinas mais afetadas pelo antimarxismo da Escola de Frankfurt. Nas últimas décadas, figuras como Peter McLaren e Henry Giroux, ambos estudantes de Freire, foram amplamente promovidos, e a sua pedagogia pequeno-burguesa “radical” foi considerada revolucionária e até mesmo marxista.
Isso atingiu o seu limite. A perspectiva política na qual Freire baseou seus escritos educacionais provou ser um fracasso completo. Ao mesmo tempo, a crise do sistema capitalista internacional politizou amplas camadas de educadores e trabalhadores da educação. Pouco antes da pandemia de COVID-19, greves em larga escala de professores foram vistas em países de todo o mundo, incluindo o Brasil, bem como os EUA, a França, o Chile, a Argentina, a Argélia e a Tunísia. Hoje, em meio ao avanço de inúmeros governos nacionais para reabrir a economia em nome das grandes empresas e retornar ao ensino presencial, professores e trabalhadores da educação estão na linha de frente da luta contra a estratégia assassina de “imunidade de rebanho” das elites dominantes.
No próximo período, camadas cada vez mais amplas de professores e trabalhadores da educação irão assumir a luta por um programa socialista e internacionalista. Junto com isso, pode-se antecipar o ressurgimento de uma perspectiva pedagógica genuinamente socialista, envolvendo a limpeza dos estábulos de Augias das políticas pseudoesquerdistas e da Escola de Frankfurt, e uma re-assimilação da rica história do envolvimento do marxismo clássico com a teoria e a prática educacional que foi em grande parte enterrada pelo stalinismo na segunda parte do século XX.
Referências
1. Kirkendall, Andrew J. Paulo Freire and the Cold War Politics of Literacy (University of North Carolina Press, 2010), p. 15.
2. Freire, Paulo. Letters to Cristina: Reflections on My Life and Work (Routledge, 1996), p. 82.
3. Brown, Cynthia. Literacy in 30 Hours: Paulo Freire’s Process in Northeast Brazil. In: Shor, Ira (ed.). Freire for the Classroom: A Sourcebook for Liberatory Teaching (Boynton/Cook, 1987), p. 226.
4. Essa citação é uma paráfrase de Vieira Pinto, um dos maiores intelectuais do IESB e importante influência sobre Freire; In: Paiva, Vanilda. National Developmentalismo: its influence on Paulo Freire (Instituto de Estudos da Cultura e Educação Continuada, 2016), posição 2610 na versão ebook.
5. Kirkendall, Andrew J. Paulo Freire and the Cold War Politics of Literacy (University of North Carolina Press, 2010), p. 64.
6. Ibid., p. 71.
7. Freire, Paulo. Pedagogia do Oprimido (Paz e Terra, 1987), p. 37.
8. Ibid., p. 91.
9. Ibid., p. 93.
10. Freire, Paulo. Pedagogia da Esperança: Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido (Paz e Terra, 1992), p. 49.
11. Ibid., p. 50.
12. Ibid., pp. 21, 101.
[13. Ibid., p. 20.
14. Ibid., pp. 97.
