Português

Mercados financeiros e mídia corporativa defendem “modelo Milei” no Brasil

O ano de 2024 terminou no Brasil com os representantes dos mercados financeiros e da mídia corporativa exigindo que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Partido dos Trabalhadores - PT) aprofundasse suas medidas de austeridade. Para isso, eles estão defendendo que o Brasil siga o exemplo do governo do presidente fascista Javier Milei, que está lançando uma combinação de cortes sociais massivos, ampla desregulamentação corporativa-financeira e brutal repressão policial contra os protestos sociais crescentes na Argentina.

Javier Milei e Jair Bolsonaro durante a CPAC no Brasil [Photo: CPAC Brasil 2024]

Desde meados de outubro passado, o ministro da Fazenda do governo Lula, Fernando Haddad, estava prometendo anunciar uma série de medidas de austeridade para cumprir o seu “novo arcabouço fiscal” e a meta de déficit zero para orçamento de 2025. Aprovado em meados de 2023, o “novo arcabouço fiscal” limita o crescimento dos gastos do governo, inclusive os sociais, a até 2,5% em relação às receitas.

Evocando as preocupações dos mercados financeiros, Haddad disse em entrevista à Folha de S. Paulo na época: “A Faria Lima está, com razão, preocupada com a dinâmica do gasto daqui para a frente. E é legítimo considerar isso com seriedade. ... Pode ter impacto na dívida. E o governo tem que tomar providências.”

No final de novembro, o governo Lula apresentou uma série de medidas de austeridade aprovadas quase na totalidade no Congresso Nacional no final de dezembro, que irão ter um impacto brutal particularmente entre os mais pobres do Brasil. Estima-se que as medidas representarão um corte de cerca de 70 bilhões de reais em dois anos e de quase 330 bilhões de reais em cinco anos.

Cerca de um terço desse corte virá da mudança no crescimento do salário mínimo, que será enquadrado na regra do “novo arcabouço fiscal”. Essa medida terá um amplo impacto para a classe trabalhadora no Brasil, uma vez que ele é referência de renda para 59,3 milhões das 103 milhões de pessoas da força de trabalho no Brasil. O salário mínimo no Brasil é de cerca de 1.500 reais, um dos menores da América Latina, a região mais desigual no mundo.

A mudança no crescimento do salário mínimo também terá um efeito cascata sobre uma série de benefícios, como aposentadorias, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), oferecido a idosos maiores de 65 anos e pessoas com deficiência vivendo em situação de extrema pobreza, o abono salarial, que garante um salário mínimo extra anual a cerca de 25 milhões de trabalhadores formais no Brasil que recebem até dois salários mínimos, e o seguro-desemprego.

Uma nota técnica publicada em dezembro liderada pela professora Denise Lobato Gentil, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mostrou que “essa medida irá quebrar um contrato social estabelecido em décadas anteriores e irá descumprir uma das metas mais primordiais do pacto eleitoral de 2022”. Com o “pacto eleitoral de 2022” ela se referiu à promessa de Lula de revogar uma série de reformas pró-corporativas dos governos de Michel Temer (2016-2018) e do fascista Jair Bolsonaro (2019-2022) que ele hoje está dando continuidade.

A nota mostrou que se o aumento do salário mínimo proposto pelo governo Lula valesse desde 2003, a renda dos trabalhadores que recebem salários e benefícios sociais teria sido 19,1% menor em 2023 e a desigualdade social, segundo o índice Gini, teria aumentado de 0,518 para 0,546 nesse mesmo ano.

Particularmente cruéis foram as medidas do governo Lula para supostamente combater fraudes nos dois maiores programas de assistência social no Brasil, o Bolsa Família e o BPC, que atendem respectivamente 21 milhões de famílias e 6 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza. O governo espera economizar 44 bilhões de reais, ou 13% do corte previsto, com a implementação do cadastro biométrico e a atualização o cadastro dos beneficiários a cada dois anos, entre outras medidas. Inúmeros especialistas têm alertado que a criação de tais obstáculos para a população mais vulnerável é inconstitucional.

Além disso, as medidas de austeridade de Lula atacam o orçamento do Fundo Nacional da Educação Básica (FUNDEB), do qual o governo espera obter 13% do total de cortes.

Mostrando as escolhas de classe do governo Lula, o ministro Haddad desistiu de enviar ao Congresso as propostas anunciadas de isentar o imposto de renda de quem ganha até 5 mil reais por mês, de realizar uma tributação extra aos super-ricos que recebem mais do que 50 mil reais por mês e de aumentar a idade de aposentadoria mínimo dos militares. O pacote do governo Lula também manteve intacto os mais de 500 bilhões de reais anuais em renúncias fiscais a grandes empresas, principalmente do agronegócio, além de ignorar os mais de 40% do orçamento federal direcionados para o pagamento de juros e amortização da dívida pública.

Resumindo a origem das medidas de austeridade do governo Lula, Élida Graziane, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora de Finanças Públicas da Faculdade Getúlio Vargas (FGV), disse em entrevista à TV Fórum em 1˚ de dezembro que elas são, “de uma certa forma, a continuidade da pauta que o ministro [da Fazendo do governo Bolsonaro] Paulo Guedes em 2019 havia proposto ao Congresso”.

Mercados financeiros e mídia corporativa brasileira defendem um Milei brasileiro

As medidas brutais de austeridade do governo Lula foram, no entanto, consideradas insuficientes pelos mercados financeiros, criando uma assim chamada “crise de confiança” amplamente repercutida pela mídia corporativa no Brasil. O humor dos mercados financeiros foi resumido pelo CEO e publisher da Forbes Brasil, Antonio Camarotti, que em meados de dezembro escreveu: “O Brasil Não Aguenta Mais Dois Anos de Governo Lula”.

Ao longo de novembro, antes mesmo do anúncio do pacote fiscal, bancos como o Morgan Stanley, o JPMorgan e o HSBC rebaixaram as ações brasileiras. No ano passado, a Bolsa de Valores no Brasil testemunhou uma fuga de investimentos de R$ 24 bilhões, a maior desde 2016, e o país registrou a terceira maior saída líquida de dólares desde 2008. Esse movimento foi direcionado principalmente aos EUA e impulsionado após a vitória eleitoral de Donald Trump.

Como consequência, a moeda brasileira, o real, foi uma das que mais se desvalorizou no mundo, passando de R$ 4,85 para R$ 6,18 ao longo de 2024. O Banco Central do Brasil aumentou a taxa de juros de 10,25% em junho para 12,25% em dezembro, com a perspectiva de alcançar 14,25% até março deste ano.

Essa situação foi respondida por representantes da elite financeira e da mídia corporativa brasileira defendendo que o Brasil siga o exemplo do presidente argentino fascista Javier Milei e coloque todo o peso da crescente crise econômica sobre as costas da classe trabalhadora brasileira.

Em meados de dezembro, Maílson da Nóbrega, ex-ministro da fazendo do governo José Sarney (1985-1990) e um dos principais porta-vozes dos mercados financeiros no Brasil, disse à Jovem Pan: “Se ele conseguir [fazer] tudo o que está propondo, o Milei vai ser um revolucionário. ... Eu acho que ele pode ser um exemplo.” Dias depois, ao UOL, ele disse que “não há saída no Brasil sem atacar os gastos obrigatórios”, propondo desvincular “o aumento do salário mínimo com a previdência” e acabar com os pisos constitucionais da saúde e educação.

No mesmo sentido, os três principais jornais brasileiros - Globo, Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo - escreveram editorias contrapondo o ajuste fiscal do governo Lula ao que Milei está fazendo na Argentina.

No mais enfático deles, o Estadão escreveu em 2 de dezembro que “Uma onda de otimismo tem varrido a Argentina nos últimos meses.” Ele continuou: “Com tantas dificuldades, o país [Argentina] deu passos corajosos na direção correta, uma atitude que contrasta com a hesitação do governo de Lula da Silva. Neste momento, a Argentina ensina algo ao Brasil: quanto mais se adia o reequilíbrio fiscal, mais amargo é o remédio a ser adotado.”

Mais significativamente, todos eles também lançaram uma ameaça ao governo Lula, dizendo que ele pode ter o mesmo destino da ex-presidente petista Dilma Rousseff (2011-2016), que em 2016 sofreu um impeachment fraudulento que intensificou seus ataques à classe trabalhadora brasileira com seu vice-presidente e sucessor, Michel Temer.

Em 17 de dezembro, o Globo escreveu em editorial: “A última vez em que a [taxa de juros] Selic foi alçada a tal patamar [de 14,25%] foi em 2015, quando Dilma Rousseff era presidente, o país debatia a urgência de um ajuste fiscal, e a economia estava prestes a registrar dois anos duríssimos de recessão. Não dá para repetir os mesmos erros.” Cinco dias depois, a Folha escreveu: “Encapsular-se na teoria do almoço grátis [i.e., expansão ilimitada dos gastos do Estado] vai conduzi-lo [governo Lula] para um fiasco parecido com o de Dilma Rousseff”.

Ao se curvar covardemente a essas ameaças, o governo do PT está indicando que buscará uma guinada ainda mais à direita ao longo de 2025 para satisfazer os mercados financeiros. A perspectiva é que este ano o Brasil enfrente dificuldades econômicas crescentes, com um crescimento menor, inflação mais alta, particularmente de alimentos e combustíveis, taxas de juros mais altas e uma possível recessão no segundo semestre.

Em 19 de dezembro, o ministro Haddad declarou numa coletiva de imprensa que o pacote apresentado no fim de ano “não é o suficiente”. Em vídeo no dia seguinte para acalmar os mercados financeiros, Lula disse que “a estabilidade econômica e o combate à inflação são as coisas mais importantes para proteger o salário e o poder de compra das famílias brasileiras. Tomamos as medidas necessárias para proteger a nova regra fiscal e seguiremos atentos à necessidade de novas medidas”.

As crises globais testemunhadas no ano passado se intensificarão neste ano impulsionadas pelo retorno de Trump à presidência dos EUA. Trump e seus aliados fascistas, como Milei na Argentina e Bolsonaro no Brasil, serão um fator de desestabilização para o governo de Lula e outros governos da “Maré Rosa” na América Latina, uma região que Trump prometeu ser o foco de seu governo como parte de uma luta global contra a China.

A adoção das políticas de austeridade selvagem de Milei pela classe dominante capitalista no Brasil e em todo o mundo - que estão sendo adotadas como modelos pelo governo oligárquico de Trump nos EUA e em toda a Europa - tem implicações profundas. Como a história da América Latina demonstra, esse programa (que tem seus antecedentes diretos nas políticas econômicas do ditador chileno Augusto Pinochet) leva inexoravelmente à imposição de regimes ditatoriais brutais necessários para suprimir a oposição em massa da classe trabalhadora.

A classe trabalhadora deve responder a essa ameaça unificando suas lutas por melhores salários e condições com uma luta pela perspectiva socialista e internacionalista defendida pelo Comitê Internacional da Quarta Internacional (CIQI).

Loading