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Apocalipse nos Trópicos: Uma análise limitada da relação entre política e religião no Brasil

O documentário Apocalipse nos Trópicos, da diretora Petra Costa, chamou a atenção de uma audiência internacional significativa ao tratar da relação entre um segmento do movimento evangélico ligado à “teologia do domínio” e a extrema direita fascista personificada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro no Brasil. Nas primeiras duas semanas após a estreia em 14 de julho na plataforma de streaming Netflix, o documentário foi o sétimo mais assistido de língua não inglesa globalmente.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, em volta de pastores evangélicos. [Photo: Netflix]

Sem dúvida, tal interesse se explica por Apocalipse nos Trópicos abordar uma questão política brasileira com significativos paralelos internacionais. Em todo o mundo, as elites dominantes têm usado várias formas de fundamentalismos religiosos – cristão, islâmico, hindu, budista – para promover movimentos fascistoides como parte de sua guinada a formas autoritárias de governo. Esse certamente é o caso nos EUA sob o presidente Donald Trump, um aliado próximo de Bolsonaro que tem entre suas bases de apoio os mesmos movimentos evangélicos fundamentalistas retratados em Apocalipse nos Trópicos.

Costa adquiriu proeminência internacional com seu documentário de 2019 indicado ao Oscar, Democracia em Vertigem. Ele tratou da crise política que estourou a partir de 2013 no Brasil e levou ao impeachment fraudulento em 2016 da ex-presidente pelo Partido dos Trabalhadores (PT), Dilma Rousseff, em meio a uma das maiores crises econômicas que o país viveu em 100 anos.

Apocalipse nos Trópicos é uma continuidade de seu documentário anterior. Em entrevista ao Programa 20 Minutos, ela explicou que Democracia em Vertigem foi produzido com o objetivo de entender a democracia “em risco” no Brasil com o impeachment de Dilma. Segundo ela, “da noite para o dia, o chão que eu pisava não estava mais lá. Então, para onde estávamos indo? [Em] Apocalipse do Trópicos, esse chão rachou, se abriu. Eu vejo o precipício e no fim desse precipício eu vejo esse possível caminho teocrático [no Brasil].”

O mais recente documentário de Costa retrata eventos políticos que se seguiram ao impeachment de Rousseff. Entre eles, estão a prisão do atual presidente petista Luíz Inácio Lula da Silva em 2018; a ascensão política de Bolsonaro ao poder em 2019; a relação política entre Bolsonaro e o pastor evangélico Silas Malafaia; e o ataque fascista às sedes dos Três Poderes em Brasília durante a tentativa de golpe de 8 de Janeiro de 2023.

Apesar de abordar tais eventos críticos, Apocalipse nos Trópicos o faz do ponto de vista subjetivo e pessimista de Costa. Essa perspectiva está enraizada nos sentimentos políticos de um meio social pequeno burguês entusiasta do PT e das inúmeras variantes da filosofia pós-moderna dominante nas universidades. 

Explicando por que ela escolheu narrar os próprios filmes, Costa disse no Programa 20 Minutos que estudou antropologia nos EUA, e “nos anos 70, 80” ela passou “por um movimento de autocrítica … por pregar uma objetividade que não existe.” Ela continuou: “Então, muitos etnógrafos passaram a falar na sua primeira pessoa, porque achavam que essa era a forma mais honesta, que … era acima de tudo um ponto de vista. Não era a verdade nua e crua. Essa verdade não existe.”

Como consequência, está ausente do documentário qualquer explicação objetiva para a crise do que ela chama de “frágil democracia” no Brasil, ignorando o papel político do PT como um pilar do regime burguês no Brasil desde o fim da ditadura militar em 1985 e seu papel na ascensão política de Bolsonaro.

A explicação teológica de Apocalipse nos Trópicos para a ascensão política de Bolsonaro 

A figura principal de Apocalipse nos Trópicos é o pastor evangélico Silas Malafaia, com quem Petra Costa realiza inúmeras entrevistas ao longo do documentário. Típico “empresário da fé” que montou um império de comunicação e produtos religiosos, Malafaia é um dos maiores representantes no Brasil do movimento neopentecostal e da assim chamada “teologia da prosperidade”.

O ex-presidente fascista do Brasil, Jair Bolsonaro, e o pastor evangélico Silas Malafaia em um comício exigindo anistia para os golpistas de 8 de Janeiro de 2023. [Photo: Joédson Alves/Agência Brasil]

O documentário retrata as relações políticas cultivadas por Malafaia desde o início do século, quando apoiou a candidatura de Lula à presidência em 2002, até seu engajamento ativo na campanha eleitoral de Jair Bolsonaro em 2018. Malafaia tornou-se conselheiro próximo do ex-presidente, apoiando suas tramas golpistas e, como o documentário mostra, defendendo fervorosamente que Bolsonaro recorresse às Forças Armadas para se preservar no poder após sua derrota eleitoral em outubro de 2022.

Malafaia e Bolsonaro são os expoentes recentes mais notáveis no Brasil da associação entre fundamentalismo evangélico e anticomunismo. Em Apocalipse nos Trópicos, Malafaia aparece em vários momentos de sua “guerra cultural” contra a esquerda, atacando energicamente a “Escola de Frankfurt” e “o marxismo cultural” que, segundo ele, “trava uma guerra ideológica com a religião”. 

Explicando sua relação com a política à documentarista, Malafaia diz: “Eu lamento dizer uma coisa ... grande parte dos pastores ficaram no monte da religião... se alienaram do que está acontecendo, e eu não”. 

Costa caracteriza Malafaia e Bolsonaro como representantes do dominionismo, ou “teologia do domínio”, “uma ideologia que prega que cristãos devem controlar todos os aspectos da sociedade”. Como exemplo, Apocalipse nos Trópicos mostra a influência de Malafaia sobre a nomeação por Bolsonaro do ministro evangélico André Mendonça para o Supremo Tribunal Federal (STF).

O documentário é, assim como Democracia em Vertigem, perpassado pelo estarrecimento de Costa diante dos eventos que narra. Depois de mostrar imagens fortes de toda a negligência do governo Bolsonaro durante a pandemia de COVID-19, ela diz: “No início, me parecia estranho que o mesmo Jesus que pregava o amor e o perdão podia ser usado para justificar um governo com tão pouca empatia”.

Para tentar entender isso, Costa diz ter recorrido à Bíblia, particularmente ao último livro do Novo Testamento, o Apocalipse. Segundo ela, “O livro do Apocalipse é um livro chave para o movimento evangélico fundamentalista. Aqui, a guerra leva à paz, a guerra leva à liberdade, a guerra é um mal necessário para combater um mal maior”.

Apocalipse nos Trópicos tenta explicar, dessa maneira, a origem das contradições sociais e políticas agudas no Brasil capitalista em uma crise de narrativas.

Essa tese política falsa – lastreada nas concepções pós-modernas da diretora – vem acompanhada, no documentário, de uma correlação forçada entre o crescimento do número de evangélicos no Brasil e a ascensão de Bolsonaro ao poder. No que Costa descreve como “uma das maiores mudanças religiosas na história da humanidade”, o documentário menciona que, “nos últimos 40 anos, os evangélicos cresceram de 5% para mais de 30% [na verdade, 27%] da população do Brasil”.

Uma explicação semelhante é compartilhada por Lula e o PT, que atribuem o crescimento da extrema-direita ao uso agressivo das redes sociais e às “fake news” – como a mentira propagada durante as eleições de 2018 de que o PT pretendia criar “banheiros unissex”, que é mencionada algumas vezes em Apocalipse nos Trópicos

Essa versão dos fatos, que corresponde às desculpas autocomplacentes dadas por um partido que assistiu sua base de apoio entre os trabalhadores despencar vertiginosamente, reduz a população a uma massa passiva e infinitamente manipulável por charlatães políticos e religiosos.

Totalmente ausente dessa narrativa estão os conflitos materiais objetivos existentes na sociedade. Ela omite os interesses classe representados pelos governos do PT, que serviram como o meio preferencial da burguesia nacional e imperialista para gerir seu regime de injustiça social e impor crescentes ataques econômicos à classe trabalhadora.

A rejeição em massa ao PT, apresentado por Costa como um partido imaculado de esquerda, só é explicável, segundo essa narrativa, por um desvio patológico da consciência política da classe trabalhadora para a direita.

O uso político do fundamentalismo evangélico pelo imperialismo dos EUA

Um trecho relevante de Apocalipse nos Trópicos retrata a influência do fundamentalismo evangélico na política dos Estados Unidos na segunda metade do século XX e suas repercussões no Brasil. 

Costa tratou dos paralelos entre esses movimentos nos EUA e Brasil em várias entrevistas sobre o documentário.

Em uma delas, a diretora fez uma analogia entre a parceria de Malafaia e Bolsonaro e a associação entre o pastor Peter Wagner, figura-chave do neopentecostalismo americano, e o ex-presidente Ronald Reagan. Em 1980, Reagan foi apoiado pelo movimento evangélico “Moral Majority”, que tinha Wagner e Jerry Falwell entre seus principais líderes. 

A partir das década de 1960, com uma crise emergente do capitalismo global em meio à Guerra Fria, a agitação anticomunista dos líderes evangélicos foi crescentemente abraçada pelas operações do imperialismo americano, tanto nos EUA como na América Latina.

Os Estados Unidos observavam com apreensão o avanço de um forte movimento operário e camponês nos países latino-americanos. Nas áreas rurais e nas periferias urbanas da região mais católica e socialmente desigual do mundo, cresceu a influência da teologia da libertação, que, como diz Apocalipse nos Trópicos, “evocava um Jesus que defendia a justiça social e desafiava as estruturas de poder”.

Esse movimento foi impulsionado pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), que elaborou a doutrina social da Igreja Católica e ajudou a forjar dezenas de milhares de Comunidades Eclesiais de Base (CEBS), grande parte delas influenciadas pela teologia da libertação. 

O crescimento desses setores do catolicismo, em detrimento dos mais abertamente reacionários, fez Washington passar a questionar a capacidade da Igreja Católica conter a influência socialista na América Latina. Os EUA passaram a promover intensamente movimentos evangélicos fundamentalistas.

Apocalipse nos Trópicos mostra documentos das décadas de 1950 e 1960 de figuras ligadas ao “International Council For Christian Leadership”. Segundo o documentário, essa organização “patrocinou aulas de inglês ministradas por missionários americanos para congressistas brasileiros, que poderiam, assim, ser convertidos numa tacada só a Cristo e ao capitalismo”.

Um documento de 12 de maio de 1965 diz que “... o que o Brasil precisa desesperadamente é de um grupo de líderes cristãos dedicados” e, para isso, estabelece uma “Tarefa Missionária” para alcançar “15 milhões de famílias não protestantes” e uma “Força Missionária” de “3 mil missionários estrangeiros, 60 mil pastores e líderes leigos brasileiros, 3 milhões de membros de igrejas protestantes”.

Apocalipse nos Trópicos também inclui cenas das “cruzadas” anticomunistas de Billy Graham, um dos representantes mais expressivos do fundamentalismo evangélico promovido pelo imperialismo americano no século XX.

Billy Graham. [Photo by Roland Gerrits / Anefo / CC BY-SA 1.0]

A ditadura militar brasileira (1964-1985) se aproveitou da reputação dos comícios fascistoides de massas do líder evangélico americano. O filme mostra Graham discursando no estádio do Maracanã em 1974 para “a maior multidão já reunida na América do Norte e do Sul, e uma das maiores do mundo”, segundo ele. Sua jornada de cinco dias reuniu cerca de 615 mil pessoas no Rio de Janeiro, tendo sido recebido pelo presidente militar Ernesto Geisel. 

O Partido dos Trabalhadores e a religião

Apocalipse nos Trópicos lança luz sobre um aspecto em particular da trajetória de Lula e do PT: sua relação com a religião.

Em um trecho do documentário, Lula explica a ascensão do neopentecostalismo no Brasil ressaltando os limites dos sindicatos e da Igreja Católica em resolver os problemas dos trabalhadores. Segundo Lula, um desempregado

chega na teologia da prosperidade e tem duas palavras: “O problema é o diabo e a solução é Jesus”. É muito simples. “Você está desempregado porque o diabo entrou na sua vida e a saída é Jesus”. ... Eu tenho uma tese de que o que levou o socialismo ao fracasso foi a negação da religião.

Essa rejeição confessa do socialismo e o abraço à enganação dos trabalhadores através da religião expõe a profunda corrupção política de Lula e do PT. 

Tal concepção remete à própria origem política do Partido dos Trabalhadores. Fundado em 1980, em meio a um levante social massivo da classe operária que levaria à derrubada da ditadura militar, o PT foi um produto da convergência entre setores católicos ligados às Comunidades Eclesiais de Base (CEBS), o “novo sindicalismo” representado por Lula e organizações pablistas renegadas do trotskismo. 

No final dos anos 1970, chegou a haver mais de 80 mil CEBS espalhadas pelo Brasil. Essas organizações católicas influenciadas pela teologia da libertação estavam inseridas em movimentos rurais por reforma agrária e movimentos sindicais e por reformas sociais nas cidades.

Intelectuais católicos como Leonardo Boff e Frei Betto, que permanecem influências centrais do PT e do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), sistematizaram uma ideologia antimarxista baseada em um amálgama entre críticas reformistas ao capitalismo e ao imperialismo e a fé religiosa. Mas talvez o autor mais influentes associado à teologia da libertação e ao PT seja o educador Paulo Freire – um dos alvos preferidos da “guerra cultural” de Bolsonaro e Malafaia contra uma suposta doutrinação esquerdista nas escolas. Um “socialista cristão”, Freire reuniu de forma eclética diversas correntes filosóficas antimarxistas, combinando aspectos do idealismo hegeliano, do existencialismo e da Escola de Frankfurt. 

O papel político da “teologia da libertação” na gênese do PT foi o de desviar conscientemente as lutas explosivas da classe trabalhadora e das massas empobrecidas latino-americanas do caminho da derrubada revolucionária do sistema capitalista.

Hoje, as consequências dessas concepções estão ainda mais expostas. Os ataques aos trabalhadores e pobres no Brasil continuam neste terceiro governo Lula, enquanto ele busca fortalecer as mesmas Forças Armadas responsáveis pelo golpe de 1964 e que apoiaram a conspiração ditatorial-fascista de Bolsonaro.

Em contrapartida, há uma crescente oposição no Brasil e internacionalmente às tentativas de líderes fascistas, como Trump nos Estados Unidos, de empregar o fundamentalismo religioso para sua busca pela instauração de regimes ditatoriais da oligarquia capitalista. 

Apocalipse nos Trópicos toca em problemas políticos importantes e chama atenção a figuras e episódios históricos e contemporâneos relevantes. Suas explicações sobre esses fenômenos são, entretanto, confusas, equivocadas ou diretamente reacionárias.

As camadas crescentes de trabalhadores e jovens que estão sendo radicalizadas pelo aprofundamento da crise social e política, pelo avanço do fascismo e da guerra mundial, precisam de uma compreensão científica sobre esses problemas políticos. Acima de tudo, é necessário compreender essa guinada das classes dominantes à barbárie como um produto direto da crise do sistema capitalista global. Enfrentá-la exige a construção de um movimento revolucionário de massas da classe trabalhadora pelo socialismo mundial.

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